domingo, 20 de março de 2011

O pau da barraca

Por mais de bem com a vida que estejamos, tem aqueles dias em que não adianta, a gente se queixa. Queixas miúdas: a empregada que quebrou a tampa do açucareiro, o marido e sua maldita apneia, a filha adolescente que implica com tudo, o carro que está caindo aos pedaços, ou seja, nenhuma tragédia. Dez minutos de papo no telefone com a melhor amiga valem por uma sessão de terapia, e os problemas retornam à sua verdadeira dimensão: mínima.

Só que às vezes não estamos nem um pouco de bem com a vida, nem um pouco. O mundo está desmoronando de verdade: a empregada foi flagrada roubando, o marido parece que vive em outra galáxia, a filha está prestes a levar bomba no colégio e o carro... que carro? Foi vendido para pagar as dívidas, esqueceu? Outro dia, uma amiga desabafou sobre tudo isso: de como a vida dela estava uma M generalizada, e essa letra M não era de magnífica. E se saiu com esta: “Tenho vontade de chutar o pau da barraca, deixar que todo mundo se vire sem mim e sumir. Mas não posso porque o pau da barraca sou eu.”

Quem precisa de Nietzche, Schopenhauer, Sêneca? “O pau da barraca sou eu” foi a coisa mais filosófica que ouvi nos últimos tempos (permita eu exagerar um pouquinho). Entendi com clareza o conceito sofisticadíssimo que minha amiga desenvolveu. Simplesmente não dá para a gente chutar a si próprio, tirar a si mesmo de cena, e eu sei muito bem o que um psiquiatra diria: “Isso é onipotência, meninas. Quem vocês pensam que são? As controladoras universais, as bambambãs do cotidiano, as deusas sagradas do Olimpo?”

A verdade é que a gente assume tantos compromissos e se enreda de um jeito na vida, que depois não consegue mais se desvencilhar sem deixar mortos e feridos. Todo mundo deveria ter o direito de chutar o pau da barraca, mas a responsabilidade impede, mesmo quando não somos o pau da barraca. E sendo, aí é que não dá mesmo para levantar acampamento.

Eu, de vez em quando, sumo dois ou três dias, mas volto. Encontro todo mundo vivo e mais corado. É bem verdade que deixo um dossiê com todas as regras de sobrevivência na selva, os telefones de contato e um dinheirinho guardado na gaveta para o caso de imprevistos. Deixo a barraca aos cuidados de quem fica. E descubro que chutar o pau da barraca as vezes por mais desnecessário que seja para o mundo, para você torna-se vital.


"Eu conheço o medo de ir embora
Embora não pareça, a dor vai passar
Lembra se puder
Se não der, esqueça
De algum jeito vai passar
O sol já nasceu na estrada nova
E mesmo que eu impeça, ele vai brilhar"

Oswaldo Montenegro

quinta-feira, 3 de março de 2011

Você, modo de usar

Quando caminho pelas ruas da cidade, ou mesmo quando circulo de carro, reparo em pequenos pontos comerciais em construção e na hora penso: tomara que seja uma livraria, tomara que seja uma papelaria, tomara que seja uma galeria de arte, tomara que seja um bistrô, tomara que seja uma floricultura. Vou acompanhando a obra com expectativa, até que um dia os tapumes são retirados e shazam: é mais uma farmácia.
O filme Amor e Outras Drogas dá uma amostra de como os laboratórios movimentam fortunas e estimulam o consumo de medicamentos de forma impulsiva e muitas vezes desnecessária. Remédio não é sorvete, não é banana, não é pãozinho. Mas o povo se acostumou a ingerir goela abaixo o que lhe sugerem, sem receita, sem critério, e a indústria farmacêutica prospera.
Esse é só um exemplo de como a falta de qualidade de vida pode adoecer e até matar. A causa de óbitos geralmente é infarto, câncer, infecção generalizada, falência múltipla de órgãos, mas algumas dessas doenças tendem a iniciar décadas antes, por meio de uma rotina de muito stress, ansiedade, angústia emocional e neuroses não tratadas. Negativismo, raiva, frustração, nada disso colabora com nosso metabolismo.

É aí que pequenas atitudes podem fazer diferença, como praticar atividades físicas, buscar algum recurso para relaxamento (ioga, meditação, terapia, religião, massagem), cultivar amigos, dormir bastante, usar filtro solar, cuidar da postura, beber muita água, controlar o peso, não fumar, não beber em excesso, fazer check ups periódicos – e não se drogar, lógico. Os médicos têm batido nessa tecla com insistência, mas ainda há quem considere esse blablablá improdutivo ou politicamente correto demais.

Tem nada a ver com politicamente correto, e sim com inteligência. E inteligência não se vende em frascos.

Farmácias comercializam produtos de primeira necessidade. Sem elas, não teríamos acesso a medicamentos fundamentais para nossa saúde mental e física, devidamente prescritos, mas precisamos de tantas?

Creio que teríamos uma sociedade bem mais saudável se a população contasse com inúmeros pontos de venda de livros, sucos, flores, livros, discos, bicicletas, livros, frutas, bolas de futebol, raquetes de frescobol, instrumentos musicais, sapatilhas, livros, livros e, claro, livros.